A lógica histórica do fascismo e o perigo do Bolsonarismo no juízo do povo trabalhador

outubro 5, 2022

A lógica histórica do fascismo e o perigo do bolsonarismo (a forma atual do neofascismo brasileiro) no juízo do povo trabalhador:

Imaginem que Hitler tivesse saído do poder em 1937. Talvez muita gente convicta que aquilo era bom não tivesse provas suficientes de como aquilo era ruim. Para o fascista convicto, o problema foi a derrota, não a guerra e o genocídio. Mas talvez não seja assim para o fascista comum: certamente muita gente que apoiou o fascismo por outras razões e desdenhou de seus perigos se arrependeu depois de 1942-1945.

É mais ou menos esse o caso do bolsonarismo: se ele realizar as maldades comuns que são inevitáveis no fascismo (o genocídio é um deles), será tarde demais para se arrepender. Se ele não conseguir por derrotas políticas e eleitorais, vai ter sempre aquele povo que ainda duvida de que o fascismo bolsonarista é mal.

É triste, mas não há outra forma de julgar o caso: é compreensível ricos e a classe média alta perversos apoiando o bolsonarismo, pois a condição de submissão que ele impõe ao povo de baixo lhes será economicamente benéfica, além de colocá-los em um pedestal social. Mas para os trabalhadores comuns (aqueles de renda até 5-6 salários por família), não faz sentido apoiar o bolsonarismo. Mas por ideologias abstratas que motivam a imaginação arcaica e mitológica (os delírios das igrejas e de uma ideia ingênua e vazia de “nação”), parte do povo menos privilegiado apoia o fascismo bolsonarista. Isso é preocupante especialmente para os não-brancos, uma vez que o bolsonarismo não só é anti-negros (isso já faz parte da tradição colonial e mesmo da positivista no Brasil), mas também tem vínculos (via Eduardo Bolsonaro, em especial) com grupos norte-americanos que defendem a supremacia racial branca (o que é a forma mais extremada de racismo, aquela mesma do nazismo e da Ku Klux Klan).

Porém, o fascismo não consegue se manter no poder sem apoio popular. É por isto que Bolsonaro, sempre contra programas de transferência de renda (como o bolsa família) até se tornar presidente, passa a se apegar ao auxílio Brasil e defendê-lo. Por conta do interesse de reeleger Bolsonaro, até aquela tia pequeno burguesa cheia de plástica com camisa amarela passa a defender o auxílio Brasil. Por que será que gente abertamente contra os direitos da população menos privilegiada passa agora a apoiar programas populares do governo? Certamente não é pela motivação de tornar a vida do brasileiro comum melhor.

A diferença entre o fascismo e o mero neoliberalismo é que o primeiro garante estruturas heirárquicas e desiguais de maneira mais segura. Primeiro, mitigando os mecanismos de mobilidade social por mérito (que no neoliberalismo pode ser mais ou menos limitada, muitas vezes com lugares dignos para poucos e com condições de competição desiguais, mas existente e operante como um de seus princípios). Assim, o fascismo se aproxima do tradicionalismo oligarca e da ideia de castas (há os nobres, sangue azul bem nascidos, que devem ter por natureza posição privilegiada – e por isso uma dinâmica de mercado que favoreça proprietários de terra, grandes proprietários de imóveis e grandes acionistas da Petrobras – e há o povo comum, de sangue vermelho, que deve obedecer e trabalhar. Essa última casta terá indivíduos com pequenos privilégios por apoio fanático ao governo. Já os dissidentes, sofrerão as consequências da violência, da repressão e, a depender da sua etnia e do momento histórico, do genocídio.)

O segundo ponto é o militarismo. A sociedade fascista substitui a diversidade cultural e individual pela noção de pertencimento em massa aos grupos dominantes e pela idolatria aos grandes líderes. Apenas os líderes são indivíduos, os outros são massa, réplica de modelos. A criatividade, experimentação, inteligência, discussão pública e divulgação científica são atividades e valores substituídos pela disciplina padronizada, pela obediência e pela capacidade de submissão e pertencimento aos grupos de massas (igrejas, nação, unidades militares ou policiais). Apenas a elite e grupos especiais fazem ciência e tomam decisões. O conhecimento produzido não é geralmente divulgado, sendo a publicidade científica substituída por mentiras ideológicas importantes para o controle social. Os mecanismos militares são usados para repressão do próprio povo, e pertencer ao exército ou à polícia se torna um privilégio acessível ao trabalhador apoiador do regime: salários mais altos e o direito de agredir em vez de ser agredido.

O terceiro ponto é a maneira de agradar e ludibriar o povo. Como o fascismo não consegue se manter sem apoio popular, e sendo esta capacidade de obter apoio popular a razão para receber apoio da elite, ele precisa de estratégias para beneficiar o povo. Certamente não será prejudicando a elite, muito embora, em momentos críticos, possa distribuir alguns benefícios retirados da elite a fim de manter o controle social. O primeiro passo para o fascismo é separar o povo de dentro do povo: como essa distinção não funciona se for feita economicamente (uma vez que a maior parte do povo é formada pela classe trabalhadora mal remunerada), ela é feita por vias étnicas ou de pertencimento ideológico. Assim, se separam as maiorias das minorias (“a minoria vai se submeter à maioria”). Os espectros que se busca apoio são classificados com conceitos mais genéricos, enquanto o grupo a ser determinado como minoria (e, depois, como inimigo) terá rótulos mais específicos. Assim se contrasta o “cidadão de bem” com o “bandido”, o “brasileiro” com o “esquerdista”. Com isto, se pode criar mecanismos de privilégios para uma maioria que pode vir a apoiar o governo às custas do prejuízo dos dissidentes ou eleitos como aqueles que devem pagar a conta.

Aí começa o genocídio.

Primeiro, o fascismo precisa canibalizar o próprio corpo da sociedade em que surge, fagocitando partes eleitas estranhas, perseguindo os mais fracos (minorias). Assim, persegue-se os indígenas, para poder dar o que eles têm para exploração, de um lado, da elite (mineração, pecuária e monocultura em reservas indígenas), e pegar uma sobra para distribuir ao povo não indígena. Assim, o povo “maioria” se satisfaz engolindo as riquezas e direitos negados ao povo minoria. Quando a fonte seca, novos inimigos precisam ser encontrados: primeiro, a expropriação de dissidentes – “esquerdistas”, membros de religiões não cristãs (que vão pagar para os cristãos); depois a distinção precisa ser feita dentro do próprio grupo – católicos, embora ainda maioria, estão em decadência, além de se mobilizarem politicamente menos do que os evangélicos, especialmente os neopentecostais. O resultado pode ser a perseguição de católicos e a expropriação de seus bens, para distribuição entre os evangélicos. Com o terror, a proporção de evangélicos aumenta, e a relação entre grupos evangélicos e apoio ao governo se fortalece. Depois a perseguição de um grupo evangélico a outros, até que a nação seja unida em uma religião única, formando a identidade final entre igreja, nação, etnia e o grupo fascista governante, representados pela imagem do líder. A mesma lógica vale para etnia: primeiro os indígenas, depois os negros, depois os pardos, de acordo com a necessidade de obter apoio da maioria.

Quando não há mais “minorias” destacadas da maioria para expropriar e explorar, o fascismo precisa de novos povos e novas terras, sob pena de não conseguir manter o controle do povo para o governo da elite.

Então começa a guerra.

Esse é um resumo (com ilustrações meramente contingentes – onde se coloca evangélicos pode vir a ser católicos, não há como prever, mas o contexto atual aponta para algo mais próximo do que descrevi acima) do que creio ser o desenvolvimento lógico-histórico do fascismo. Suas etapas são a militarização, a perseguição de minorias eleitas, o genocídio, e a guerra.

A conclusão final é o suicídio coletivo,

pois uma hora a elite defendida e instrumentalizadora do fascismo não terá mais de onde expropriar, e então o povo fascista precisará cortar da própria carne, até a automutilação completa. E, quando esse dia chegar, a elite morrerá de inanição.

Por esta feita, a lógica do fascismo é reacionária, regressiva e anacrônica.

Políticas identitárias e diferença

setembro 9, 2017

Uma das coisas que me incomoda nos movimentos políticos “identitários” (ou, de formação de identidade de minorias) é que, quando ele se popularizou, esqueceu da sua origem: a diferença. Justamente no nome isso se torna claro: a palavra “identidades”, repetida incessantemente, é uma manifestação clara de um péssimo hábito, a saber, o de reduzir as singularidades aos conceitos gerais “identitários”. Seguindo essa ideia, existem características que definem, por completo, indivíduos. Isso faz parte da sua constituição social, e deve ser um dos únicos elementos considerados. Seguindo a via de um certo fanatismo identitário, um gay não pode ser outra coisa além de gay. Assim como uma mulher é apenas mulher (a não ser que seja mulher e negra, aí ganha espaço em um grupo “privilegiado” dentro da lógica identitária). Então, se você pertence a algum desses grupos, você se reduz a este grupo. Neste caso as diferenças sociais são apagadas: a cultura regional, a classe social, a religião, as ideias etc. Lógico que com isso eu não quero minar a luta por direitos de minorias. Só acho que a discussão política, principalmente na esquerda, tem se reduzido a categorizações simplistas e que, epistemologicamente, fazem violência à realidade. Nenhum indivíduo pode ser reduzido a meia dúzia de características que tem. A diferença e a negatividade imanente a cada sujeito individual é o que lhe faz o que é e nunca pode deixar de ser: um indivíduo.

Por conta disso, as pequenas esquerdas não conseguem agregar a maioria. Se todo gay + todo negro + toda mulher fosse votar no PSOL, a Luciana Genro seria imperatriz do universo. Só que muitos  desses indivíduos são compostos de diversas outras características, que os fazem não se sentir representados pelas lutas identitárias – porque elas são reducionistas (além, penso eu, de serem usadas para ocultar a discussão sobre elementos “comum-a-todos” da política, como questões econômicas e governabilidade).

Junto com o esquecimento da diferença, alguns movimentos identitários parecem traçar também alguns processos de normalização dos indivíduos, apelando para o punitivismo e a “denúncia” daqueles indivíduos que deveriam seguir a imposta “identidade”. Ou uma imposição de condutas aos outros, tidos como “outros” no sentido ontológico do termo (e que, do ponto de vista de pessoas que apelam para a identidade, só podem ser um monstro, porque ele é reduzido à identidade inimiga: o branco, o heterossexual, o homem). Assim se comportam alguns grupos feministas quando querem simplesmente proibir a pornografia, porque por meio disto o “homem” (vamos ignorar que pornografia não é um negócio exclusivo de homens heterossexuais, para seguir a lógica dos identitários) é estimulado a ser violento e se comportar de forma não adequada. Talvez aqui o jogo do ovo e da galinha seja válido (a indústria pornográfica produz filmes dessa e daquela maneira porque seus consumidores já desejam aquilo, ou as pessoas aprendem a desejar aquilo porque a coisa se apresenta daquela forma, configurando o desejo?). Mas não é neste ponto que eu quero entrar. Eu quero falar da restrição do desejo e da fantasia.

Antes de tudo, não quero “legitimar” nenhum tipo de desejo, fantasia ou conduta. Essa perspectiva moralista não ajuda a compreender a coisa. Além de ser ingênuo acreditar que se pode “deslegitimar” o desejo ou a fantasia, porque eles são primievos e escapam do controle social. Talvez o melhor que se possa fazer é aculturar os desejos: e o nome disso é civilização. Acontece, como a psicanálise mostra (e tento fazer uma análise aqui com meus parcos conhecimentos do assunto), que o desejo, enquanto impulso primitivo, não some simplesmente. Enquanto a civilização proíbe, julga, censura, os desejos podem muito bem ser reprimidos. Mas o desejo reprimido pode reaparecer em forma de fantasia. De outro lado, o fato de uma pessoa fantasiar não significa, necessariamente, que ela vá realizar a fantasia. A fantasia traz, por trás de si, uma reaparição recalcada de um desejo reprimido. O próprio sujeito não tem consciência disso, e o “conteúdo”, digamos assim, da fantasia não o traz de maneira explícita. A fantasia, ao menos nesse caso, é o resquício da negação do desejo em forma reelaborada. O desejo é mais forte que a proibição.

O meu ponto é que uma visão conservadora e “punitivista” não entende o problema. Quanto mais se “civiliza” em forma de censura, de “escracho”, de textão de facebook, de multa ou cadeia, mais aquela fantasia se elabora. E mais ela consegue se esconder. O fato de muitas fantasias serem vividas no momento obscuro da privacidade revela muito do ser humano. E o fato de que é justamente no desejo sexual que o ser humano das civilizações contemporâneas mais fantasia talvez demonstre o quão conservadora a nossa sociedade é com relação a isso. Espanta-me muito que movimentos que nascem sob a alcunha do libertarismo se prestem a reproduzir a lógica ultraconservadora (algumas feministas serviriam muito bem como freiras).

Ademais, fica aqui uma questão para pensar: justamente entre os padres (aqueles que não podem transar) que a pedofilia algumas vezes aparece (não somente, mas também). Tanto as crianças como os anjos não tem sexo.

Quem é “o mercado”? De quem é a “crise”?

dezembro 8, 2016

Ninguém o vê ou o ouve. Mas o mercado vê tudo. É omnisciente e omnipotente. Como um deus, ele é louvado, agradado, adorado e temido. Façam a dança da chuva para o Mercado. O Mercado não está reagindo bem aos impactos do balanço fiscal federal de 1993. Às medidas de cautelização previdenciária do fundo de derivados da Islândia. Precisamos cortar os gastos. Cortem os pulsos. Derramem sangue. O sacríficio é para o bem. A oferenda também sabe que é para seu próprio bem. É para o bem de todos. Primeiro corte o pescoço, ali jorra mais sangue. Não pense em crise, trabalhe. Até os 79 anos.

Os noticiários de jornal divulgam a ideia. Todos os comentaristas conhecem a “vontade” do mercado. Façamos o que o mercado quer. Está na Bíblia. Mas quem, afinal de contas, é o mercado? O mercado nada mais é do que um fantasma entificado por meio de discurso ideológico. Desfetichizado, ele é somente relações humanas de produção e troca, por mais abstratas que possam ser no nível da financeirização e do cassino especulativo. Qual critério usar para dizer o que é bom para o mercado? Como “o mercado” reage? A resposta deveria ser bem mais simples: o que é bom para as pessoas?

Com esta fetichização do monismo do mercado, o que se instaura é uma visão que supostamente divulga uma realidade totalitária por números e estatísticas. A “economia cresceu”. A economia “está em crise”. Mas quando cresce, cresce com o que e para quem? O quanto um “crescimento” simboliza um enriquecimento real das pessoas? De quais pessoas? Quando o “mercado aquece” (hot and sexy market!) o que o excita pode ser simplesmente produção supérflua. Do que adianta o “mercado crescer”, se boa parte da fatia deste bolo vai para poucos bolsos? Ainda quando se tem uma aparente distribuição de riqueza, a longo prazo são os mesmos que acumulam. E quando a “crise” aparece, os endividados pela sobrevivência é que “quebram”.

E quando o estado não pode pagar sua dívida, a empresa privada, que não tem nada com isso, fica com medo que o “mercado” não seja favorável. Mesmo que ninguém saiba direito o porquê.

Não é hora de parar de enganar com o discurso político, midiático e hipócrita de que “dados econômicos” financeiros mostram toda a realidade, ou que eles são eticamente confiáveis para mostrar o caminho?

Da produção, o que garante às pessoas realmente uma vida boa? O que realmente satisfaz suas necessidades? Deste trabalho diário, o que é realmente necessário? O que é útil? Útil para quem?

Por fim, se todos trabalham, e passam boa parte das vidas trabalhando e se preparando para o trabalho, e fazendo coisas de graça pela oportunidade de um dia ter um trabalho, por que existe “crise”? Se trabalho gera riqueza, e todos trabalham, não pode ser verdade que não há riqueza. Ou esse trabalho não gera riqueza. Onde está a riqueza? Ou: por que se trabalha, se o trabalho não  fornece a riqueza que se precisa? (Menos ingênuo: para quem se trabalha? Quem criou a “crise”?). Se não se trabalha e se pode e se quer trabalhar, por que não há espaço para o trabalho? (Menos ingênuo: a quem pertence o espaço do trabalho? Quantas crises ele tem?)

Débitos e créditos sobre coisas que não existem. Mas que um dia virão a existir. Até que se descubra que não existem mais. Nunca existiram. Bolhas. Borbulham promessas não cumpridas. Sobre coisas que não existem. O mercado não vai receber a sua parcela da dívida. Porque o mercado decidiu que você não vai mais ter emprego. E seu trabalho não poderá ser trabalhado. Você não pode mais trabalhar – você não tem mais como nem onde. A bolha comeu o seu trabalho e está braba que você não devolveu o que você sempre deu a ela como se não fosse seu.

Carnes sólidas se escondem em máscaras que lhes abstraem a realidade, para ocultar o que é cruel. Sob a manta do “mercado”.

Extirpar todos os recursos naturais de forma não renovável. Transformar aquele espaço onde se poderia respirar e beber água de graça em um “mercado” onde se trabalha para comprar água e oxigênio. Até que acabe. Pelo bem da economia.

 

A necessidade de autocrítica dos partidos brasileiros de esquerda

novembro 7, 2015
  1. O homem e os ideais

Há quem diga que aprendemos com os erros. O ditado é válido mesmo para seres irracionais, como ratos ou cachorros: experimente observar como após sofrerem algum ferimento ou susto como eles vão relutar em repetir o ato. O humano é capaz de raciocinar para além dos meros fins imeditatos, pois além da capacidade de raciocínio instrumental (aquele que visa encontrar os meios para atingir um determinado fim), o humano também é capaz de criar valores. Valores são fins que permanecem apesar das circunstâncias, algo que, junto com Kant, poderíamos chamar de “fim em si mesmo”. Através da conexão de valores e da tentativa de concretizá-los formamos ideais. Ideais de justiça, de liberdade, ideais de beleza, ideais de um jogo perfeito de futebol, de uma vida boa e feliz, entre muitas outras coisas. E é justamente esta capacidade de ter ideais que faz com que os homens sejam diferentes dos ratos: eles repetem o mesmo erro.

Se um rato desiste de procurar comida em um lugar onde uma vez encontrou um predador, provavelmente ele não vá aparecer novamente lá tão cedo. Uma criança, ainda não crescida e, portanto, livre de ideais, não coloca a mão na mesma tomada duas vezes, depois de ter tomado choque na primeira. Apenas o homem com ideais toma o susto e o repete: uma vez que ele determinou o caminho, vai tentar superar as dificuldades e tentar alcançar seu objetivo, mesmo que para isso tenha que tentar a mesma coisa de modos diferentes.

Esta capacidade de ter ideais e valores é o que faz com que o homem projete suas ações e seja capaz de ter concepções éticas, sendo esta mesma capacidade guiada pela capacidade de pensar a totalidade. Sem entrar adiante em detalhes filosóficos e por demais complexos para este momento, quero apresentar um tipo de homem que tem repetido o ato de colocar a mão na tomada que o dá choque: o homem de esquerda.

Deixo claro que o faço aqui não como deboche ou como ofensa, mas como autocrítica. A insatisfação diante das perspectivas políticas, e a pouca probabilidade de encontrar pessoas com ideais semelhantes que sejam capazes de autocrítica e de raciocínio dialético faz com que eu escreva este texto como manifestação de um incômodo. Para isto, vou começar com uma observação geral e, posteriormente, apresentar alguns pontos que, ao meu ver, precisam ser repensados na prática política dos partidos de esquerda.

  1. A repetição da derrota e os cabeças-duras

O diagnóstico que deveria ser feito da atuação da esquerda é simples: derrota. E a questão que se coloca é a seguinte: como sustentar esta afirmação? Simples: quantas são as experiências “de esquerda” que deram certo? Eu só teria uma alternativa a sustentar: a social-democracia. Ainda assim é difícil traçar uma linha entre a social-democracia e um liberalismo regulado (se é que há esta linha), e certamente muitos que seguem a via da esquerda dita “legítima” atacariam esta alternativa como uma “solução burguesa” para o problema político – a única via é o anticapitalismo.

Por alguma razão “oculta” (obviamente pelo balanço dos poderes) quando algum partido de esquerda tem atuação política, ou ele não chega ao poder, ou ele se adequa ao poder (deixando de ser, digamos assim, “de esquerda”) ou ele “toma” o poder – e perde de novo, porque ou as forças “maiores” farão o jogo da escassez econômica e da manipulação via mídia para derrubá-lo, ou o próprio povo vai cansar da única via que uma “tomada” de poder arranja para se manter: o autoritarismo. Muito embora a lógica do sistema possa ter relação com isto, simplificar o jogo entre “poder burguês” versus “proletariado” é algo que não cabe na complexidade da realidade, e quem prova isto é a própria resistência da realidade.

Para não me tornar demasiado longo, vou elencar, e comentar brevemente, alguns do aspectos que eu acredito que a esquerda precisa não necessariamente negar (alguns sim, outros não), mas ao menos pesar e reinventar.

  1. O dogmatismo marxista e problemas consequentes

O próprio Marx era um filósofo engajado no pensamento crítico – uma linha filosófica que, desde Kant, visa superar os questionamentos do ceticismo sem cair no dogmatismo. A via para isto é a análise criteriosa dos pressupostos que se utiliza para defender uma ideia, uma tese ou um sistema. Apesar disto, as “esquerdas marxistas” teimam no dogmatismo. Não vou entrar em detalhes sobre o autor (até porque quando a esquerda política defende estas ideias, o faz sem nem mesmo conferir a fonte, logo a discussão interpretativa do autor não vem ao caso). Vou citar apenas alguns pontos deste dogmatismo que, penso eu, deveriam ao menos ser postos em sua complexidade:

(a) a tese do determinismo social através da configuração de produção econômica da sociedade (a estrutura básica de produção que condicionaria não só o sistema produtivo, mas todas as crenças e a cultura – ou seja, determina a “superestrutura”, a consciência, etc.). Esta tese é reducionista e anti-dialética (ela é, na verdade, fundacionista). Usá-la o tempo inteiro como uma fórmula é olhar apenas sob o ponto de vista macro e negar as relações recíprocas que acontecem entre o micro e o macro, entre os indivíduos e o ambiente e entre os indivíduos entre si influenciando o ambiente e, portanto, é impor uma visão pobre de mundo à realidade. O problema da realidade é que ela teima em não se adequar às ideias simplistas. Nisto também podemos adicionar a ideia de que o único paradigma válido para entender as dinâmicas sociais é a oposição antagônica entre “burguesia” e “proletariado” e acreditar no determinismo histórico. Porém estas teses envolvem questões metafísicas, de filosofia da história e de sociologia que não podem simplesmente ser afirmadas sem questionamento, nem serem tratadas fora da complexidade do mundo real. Muito embora o antagonismo entre “burguesia” e “proletariado” possa ser entendido como um elemento importante na leitura da dinâmica histórica e social, ele não é o único, e elementos culturais como religião, preferências pessoais, gosto, concepções estéticas, visões de mundo e modos de vida também devem entrar nesta balança. Indivíduos sociais não são totalmente absorvidos pelo grupo social a que pertencem, e nem estes grupos são tão facilmente delimitados. A prova disto é que muitos dos que poderiam ser classificados como “proletariado” são contra a esquerda, e não por simples questões de “ideologia” (ou seja, poder de controle imaginário e de consciência do poder hegemônico), mas por conflito de visões de mundo ou de pretensões de modo de vida (por exemplo, muitos conservadores ainda se assustam com o ateísmo de certos grupos de esquerda, preferindo assim o discurso nacionalista e “trabalhista” – sic – dos populistas de direita). Alinhado ao necessitarismo histórico e à arrogância que leva muita gente a fazer “análises de conjuntura” sobre economia e geopolítica baseados nestes dogmas simplistas e reduzindo tudo à macropolítica (sem contar o otimismo ingênuo), isto nos leva às análises e planejamentos fora da realidade elaborados pelos partidos de esquerda – o que os deixa sem projeto real para além do mero denuncismo ou defesa de alguns direitos humanos e trabalhistas básicos.

(b) compreender a afirmação  “os filósofos até agora se preocuparam em interpretar o mundo, o que importa é transformá-lo” como se isto significasse colocar uma oposição entre pensar e fazer. O fazer não é uma negação do pensamento, assim como seria compreender mal o significado da comunicação humana quando se pensa que teorias que são apresentadas e discutidas sobre uma visão ou sobre o funcionamento das coisas não influenciam nossas ações. Voltando ao ponto anterior, a cultura é um elemento de transformação, e existe entre cultura e estrutura econômica e material uma relação de causalidade recíproca. Adorno não afirmou à toa (na Dialética Negativa) que precisamos empreender o negativo, pois o positivo já nos foi dado. Isto significa que um fazer acrítico, um fazer sem pensamento, apenas reproduz o que “já está dado”. O mundo está configurado e pensado de acordo com um modo de funcionamento, e apenas o processo de negação é capaz de transformá-lo. Este processo, porém, envolve necessariamente o pensamento (o negativo por excelência), e seguir uma cartilha de partido político é tanto reproduzir o positivo quanto o é seguir à risca a naturalização da ideologia dominante. É cada um a cada ato quem precisa empreender o negativo, e o esforço de pensar não pode, de maneira alguma, ser esquecido ou negado. O que nos leva a

(c) o bullying que os que buscam propor questões e soluções sofrem nos ambientes políticos atuais, especialmente os de esquerda: os dogmas foram consolidados de tal maneira que tentar pensar fora das linhas já predeterminadas (ou seja, empreender o negativo, como diria Adorno) é considerado uma traição, é considerado “atitude burguesa”, porque qualquer um que se colocar fora da linha será um herege (tal como um ateu diante de teístas fundamentalistas). Mas é justamente esta falta de pensamento que impossibilita a adequação do geral ao particular, de avaliação do caso específico do momento com a atitude necessária para atingir os fins, e mesmo a reavaliação dos fins de acordo com a configuração da realidade. Qualquer um que tente em um sindicato ou em uma organização estudantil dominada por partidos tradicionais de esquerda colocar uma vírgula para além do que deve ser incessantemente repetido será considerado um traidor. O participante político não deve ser nada além de um “fazedor”, um “militante” que usa o braço para levantar bandeiras mas não admite se dar a liberdade de usar a própria cabeça para além dos limites que lhe foram impostos pelos dirigentes do partido. O que nos leva a

(d) o déficit democrático. Os espaços que deveriam servir de discussões amplas de ideias e de buscas de soluções, ainda que também de conflitos de interesse, passam a ser caracterizados por estereótipos de comportamento de quem já está “engajado”, deixando a maioria das pessoas de fora do processo de discussão. É como grupos de fãs de gibis ou de música: se você não conhece e gosta das mesmas músicas ou dos mesmos gibis que foram estipulados como regra para fazer parte do grupo, você está fora. Alinhando com a verticalização dos partidos sobre os processos de autodeterminação dos grupos políticos (os sindicatos se submetem aos ideais do partido, os sindicatos acabam sendo “conectados” de maneira forçada entre si, cada um perdendo sua autonomia) à visão ultrapassada de que o único regimento político “legítimo” são os sindicatos e que apenas a união em torno de uma ideia homogênea de revolução é a verdade, isto acaba gerando a falência da esquerda.

Precisamos, urgente, de renovação, o que não implica, de nenhuma forma, em colocar fora os ideais nem tudo que se desenvolveu enquanto esquerda – mas implica, necessariamente, em maior autonomia das partes e visões mais críticas que reconheçam a diversidade e a complexidade das relações na política.

O RECALQUE E A DITADURA DA ALMA BRASILEIRA

junho 8, 2015

A sociedade brasileira vive um momento de crise e de regressão na política democrática. Parte da população que até pouco tempo se encontrava calada ou simplesmente não obtinha meios de expressar seus posicionamentos, agora encontra na internet e também nas ruas apoio para reforçar suas crenças. Se de um lado o espaço público se abre para o debate de ideias e para a liberdade política, este mesmo espaço também acaba sendo usado como meio para expressar ódio e repressão à liberdade alheia. Menos do que um fruto da democracia, o resultado político desta abertura de espaços de discussão no Brasil expressa o resultado de décadas de repressão política, oriundas da ditadura militar, da violência do processo de colonização e formação nacional e das desigualdades sociais e políticas (não necessariamente apenas econômicas).

Se antes o recalque era ele mesmo resguardado, agora ele aparece sendo manifesto pelo discurso político. Aquele que antes se calava agora descobre (através da internet, dos opinólogos de jornais, das conversas de botequim ou de intervalo de trabalho) que a sua opinião é compartilhada por muitos e toma coragem de expressá-la sem limites, sem barreiras e com toda a sua “coragem”. A manifestação constante dos preconceitos sociais, raciais, de gênero e político, que colocam qualquer pessoa que fuja do simplismo (pressuposto pelo mundo do fascista) como “traidora da pátria”, como “vagabundo”, “comunista”, “puta”, “maconheiro”, entre outros, manifesta ela mesma o recalque guardado na alma do brasileiro – e a consideração de que expressar isto seja um ato de “coragem” manifesta que, um dia, eles tiveram medo de fazê-lo.

Por recalque não entendo outra coisa que a manifestação psicológica da repressão de motivações ou pensamentos que, direta ou indiretamente, se referem a ou lembram um trauma. O trauma é gerado pelo medo intransponível daquilo que foi reprimido, primeiro de fora para dentro, depois de dentro para fora. Uma vez que qualquer coisa que remete ao trauma é reprimida, o recalque torna-se o conjunto de repressões que impedem que o trauma apareça em sua plenitude para a consciência do sujeito. Assim, qualquer pensamento que esteja de alguma maneira conectado com o trauma será reprimido e negado. O conjunto fisiológico o nega não apenas logicamente, mas através do esforço físico e motivacional.

Considerando que o recalque impede um conjunto de pensamentos, sentimentos e motivações, a pessoa recalcada tem sua vida psíquica limitada pelas suas repressões. Disto se segue que, na relação consigo mesmo, o sujeito recalcado tem um campo de sentimentos e de pensamentos limitado pelo trauma. Ora, uma vez que o recalque o impede de pensar em uma série de coisas, é provável que o sujeito torne-se ignorante com relação aos temas que necessitam do tipo de pensamento que ele reprime. Mas não apenas ignorante, na relação consigo mesmo, mas uma vez que deve bloquear estes pensamentos, o deve fazer não apenas na relação consigo mesmo, mas também na relação externa. Isto significa que o sujeito recalcado deve reprimir no ambiente externo aquilo que ele reprime em si mesmo. Além de ignorante, ele torna-se intolerante com relação ao aparecimento no seu ambiente daqueles pensamentos que ele recalca em si mesmo.

Ora, uma vez que o sujeito recalcado agora tem a seu dispor um mundo com menos limitações, onde o debate político é mais aberto, com possibilidades de conexões com o mundo inteiro através dos meios de comunicação, ele encontra estas duas possibilidades: tanto o espaço de aparecimento de pensamentos que ele reprime, quanto o espaço para a repressão no meio destes aparecimentos.

Quando o recalque é político, tal como é o recalque do brasileiro, fruto da violência da nossa história, da série de repressões reacionárias contra a transformação social e emancipação do brasileiro, ela vai aparecer na amplitude mesma do político: se um dia a alma brasileira almejou libertar-se do latifúndio, bradando por reforma agrária, hoje, depois de tanto apanhar e sofrer lavagem cerebral, busca se readaptar ao mundo reproduzindo o discurso do seu repressor: reforma agrária é coisa de vagabundo, e latifúndio é fruto do trabalho (este é apenas um dos exemplos possíveis). Não importa que a história e a lógica falsifiquem a crença: o recalcado recalca a lógica e a história junto, para se adaptar ao seu trauma.

E podemos pensar aqui como a alma brasileira anda recalcada com relação aos vários temas ligados à política, e isto tanto à direita quanto em alguns grupos governistas que estariam supostamente à esquerda: o recalque aparece na unilateralidade do debate.

A alma brasileira precisa do divã.

Por que a RBS presta um desserviço à educação e por que o programa “A educação precisa de respostas” é cínico

novembro 14, 2013

Na primeira vez que ouvi falar do programa publicitário “A educação precisa de respostas”, do grupo RBS, fiquei pensando o quanto isto era cínico. Evitei assistir qualquer reportagem vinculada (assim como evito este canal de comunicação, especialmente o jornalismo político), mas compreendi que programas como este fazem parte das ações de grandes empresas para manter sua imagem vinculada a interesses sociais e éticos, e também a projetos sociais que garantem isenção de impostos. Não é a primeira vez que monopólios de comunicação fazem este tipo de programa, e a própria RBS volta e meia aparece com algum jargão cínico. Portanto, nenhuma surpresa.

Porém, se pensarmos bem e procurarmos exemplos, encontramos casos de cinismo escancarado disfarçado de interesse ético, que na verdade são apenas jogos ideológicos para reforçar as motivações da empresa no imaginário social e ainda ter algum lucro com isso. Exemplo típico do que estou dizendo é o programa “Criança esperança”, da rede Globo: você doa o dinheiro, e a Globo desconta do seu próprio imposto. Na televisão, jingles emocionantes, atores e músicos caricatos da indústria cultural chorando, abraçando crianças carentes, além de reportagens e narrativas de casos de crianças abandonadas que foram salvas pelo programa. Não que o dinheiro nunca chegue: só que nós damos este dinheiro, e a Globo desconta do seu imposto de renda. Indiretamente, estamos tirando dinheiro que iria para o governo (em forma de imposto) para dar para a rede Globo (que ganha desconto deste imposto), e via Globo o dinheiro é repassado (como se fosse doação sua, e assim, gerando o abatimento) para o programa social.

Pois bem, o caso do Criança Esperança já é bem conhecido. A partir daí, então, me pergunto: que tipo de motivação pode haver por trás do programa da RBS? Interesse social pela melhora da educação? Bondade pura? Duvido muito. Incomodado com isto, resolvi escrever as razões pelas quais a RBS, ao lançar um programa que atrela sua imagem ao interesse pelo desenvolvimento da educação, é cínica e hipócrita. Não pretendo me aprofundar nos supostos motivos que a levam a fazer isso (que podem ser caminhos variados para a mesma –sempre a mesma – coisa, isto é, mais dinheiro e mais poder, através da manipulação da opinião pública). Pretendo apenas apresentar alguns breves argumentos de por que a RBS presta um desserviço à educação, e neste ponto dividirei os argumentos em basicamente dois: (1) Por que a RBS colabora com o desmantelamento da educação escolar pública (e por que isto é ruim para a educação escolar em geral); e (2) Por que a RBS presta um desserviço à educação, sendo este último termo aqui entendido em sentido amplo (ou seja, não restrito à educação escolar).

Argumento 1: A educação escolar é apenas um modo de educação que existe, sendo este modo ligado a uma instituição social (escola) que tem determinada função dentro do quadro social. Uma vez que consideremos a escola um momento essencial na formação do cidadão, e um direito (e eu diria ainda também, um dever) universal, de todo cidadão, garantir o acesso de todas as pessoas a escolas de qualidade colabora para a qualificação da cidadania, da sociedade, do trabalho e da vida em geral. Enquanto democrática, a sociedade deve garantir direito a todos, e se educação é um direito básico e deve ser universal, o acesso aos meios de educação (entre eles a escola) não pode ser exclusivamente atrelado à iniciativa privada, pois mesmo quem não tem condições de pagar deve ter o direito de ter acesso à escola. Como no sistema que vivemos mesmo condições de pleno emprego não seriam suficientes para garantir que o sistema, sendo completamente privado, garanta condições das pessoas pagarem por ele (ou seja, a utopia neoliberal é falsa), deve haver um sistema público qualificado de educação escolar que garanta acesso universal.

Sendo assim, podemos deduzir que defender uma educação escolar de qualidade e democrática é buscar garantir que o sistema público se fortaleça (independente de haver ou não oferta de educação escolar no sistema privado). Qualquer um que se oponha ao sistema público se opõe à qualificação e ao acesso à educação e, portanto, não colabora com a mesma. Ora, uma vez que a RBS colabora com o lobby privatista, via manipulação de informações para manipular opinião pública, a RBS colabora com o descrédito das instituições públicas e incentiva a crença de que a privatização é a melhor saída – mesmo que isto acabe tornando o serviço um privilégio de poucos e uma forma de extorsão na mão de quem possuir domínio sobre esse meio. Sendo assim, a RBS presta um desserviço à educação.

Ainda mais, uma vez que a qualificação da escola depende da qualificação da infraestrutura, do sistema e dos funcionários e, uma vez que esta qualificação demanda certo investimento, se colocar contra o investimento necessário é se colocar contra esta qualificação. Se eu quero bons professores, vou procurar pagar bons salários para não perder profissionais qualificados para outros setores. Se pago um mau salário, estou incentivando que: (1) o profissional mais qualificado saia em prol de um salário melhor no sistema privado ou (2) troque de profissão em busca de um salário melhor em outra área. Ou seja: a qualificação do professor (elemento essencial para qualificação do ensino escolar) passa por uma boa oferta de salário. Consequências da miséria salarial dos professores do estado do Rio Grande do Sul são: professores fazendo jornada de 60 horas para poderem se sustentar, sobrando pouco tempo para que possam estudar, se atualizar e preparar com mais cuidado suas aulas, ou ainda muita gente abandonando o seu posto de trabalho em prol de empregos melhores. Sem contar que a falta de estrutura e o abandono geram desestímulo que se perpetua pelo meio. Argumento análogo poderia ser estendido a outros pontos.

Pois bem, segue-se disto que apoiar a qualificação da educação escolar é apoiar mais investimento em escolas, incluindo infraestrutura, investimento em profissionais (como os que a escola não tem, como psicólogos, assistentes sociais, como mais nos que tem – pessoal da limpeza, monitoria, secretaria, pedagogia e professores). A RBS nunca apoiou nenhuma mobilização social em prol da educação e mais investimentos na educação. A RBS sempre se opôs a qualquer manifestação por melhores salários e condições de trabalho por parte dos professores e chega ao ponto de criminalizar as greves, por vezes um dos poucos instrumentos de pressão na mão dos trabalhadores. Ademais, apesar do discurso jornalístico dizer que “precisamos de mais investimentos”, o grupo não é favor de retirar investimentos de outras áreas para a educação: é contra auditoria da dívida pública (o que poderia levar a cessar pagamentos indevidos e também renegociação – fazendo assim que sobrasse mais dinheiro para investir em outras áreas), é a favor da isenção de impostos para grandes empresas se instalarem aqui (estimulando a competição desigual e injusta e também colaborando para que grandes empresas mantenham sua lógica de sugar os governos e os recursos naturais), é contra qualquer aumento de imposto para aumentar investimentos em áreas como saúde e educação, e certamente sempre é contra retirar dinheiro do crédito empresarial ou da área de segurança pública (a única coisa pública que eles gostam) para investimento em educação. Logo, a RBS é contra o aumento do investimento em educação escolar, logo, é contra a melhoria da educação escolar (pois, ainda que se possa fazer sempre melhor uso do dinheiro investido, o que se investe em educação no Brasil é sempre pouco perto do mínimo necessário para que a área funcione como deveria).

Argumento 2: Se educação é algo mais amplo, que está ligado à formação civil, social, intelectual e afetiva dos cidadãos, de forma ampla, então âmbitos relacionados com circulação de informação colaboram com a educação. Assim a mídia assume um papel na educação, e enquanto a mídia é importante, a diversidade e o acesso amplo a informações, o direito ao contraditório, à comparação e à informação mais isenta possível fazem parte da boa educação para uma sociedade democrática. Enquanto a RBS manipula informações em prol dos seus interesses próprios e das empresas que a financiam, enquanto ela continua chantageando os governos (que precisam liberar verbas de publicidade para que ela não use seu poder para acabar com ele diante da opinião pública), enquanto ela se opõe à discussão livre do marco regulatório para democratização e diversificação da mídia (preferindo omitir a verdade e dizer que o marco é uma tentativa de censura, confundindo a opinião pública para manter seu monopólio), ela é contra a qualificação da educação. (Com relação a este último ponto, vale a pena conferir a reportagem do Jornalismo B no seguinte link: http://jornalismob.com/2013/09/10/grupo-rbs-recebeu-417-casas-do-governo-do-estado-em-2012/ )

Sendo assim, se pode concluir que a RBS presta um desserviço à educação e que, fazendo publicidade como se estivesse estimulando a educação, está sendo cínica e hipócrita.

Duas falácias: o ad hominem e a frase “é socialista mas tem um iPhone”

outubro 26, 2013

Duas coisinhas básicas antes de desqualificar seu adversário em um debate:
(1) – Quando você desqualifica o seu adversário por quem ele é ou pelo o que ele faz, você não está refutando seus argumentos. Isto é uma falácia muito comum chamada “ad hominem”. Então, você pode obter sucesso assim em acabar com a reputação de uma pessoa, mas se o seu argumento for válido e montado sobre premissas plausíveis, o argumento dele continua sendo melhor que o seu (que nem é um argumento).
(2) – Um exemplo de ad hominem clássico no Brasil em debates políticos, decorrentes de ignorância sobre temas políticos: alguém com conhecimento mínimo de política e sociologia elabora uma crítica, e um conservador se sente ofendido e, ao invés de analisar as informações e o argumento, resolve partir para o ad hominem. Como a crítica é social, logo é classificada como “socialista” (mesmo quando não é), e por ser “socialista”, surge o ad hominem de que a pessoa que elaborou o argumento não tem autoridade sobre o assunto porque ela é “socialista e usa iPhone”. Isto, além da falácia, designa obviamente uma ignorância política porque confunde socialismo com anti-tecnologia: a linha atualmente mais influente do socialismo é a marxista, e o que ela visa é a superação do capitalismo (ou seja, o pós-capitalismo, e não um retorno a uma condição pré-capitalista ou feudal), através da apropriação do maior número de pessoas dos meios de produção (que inicialmente, por serem caros e escassos, ficam nas mãos de poucos). Portanto, quanto mais tecnologia, melhor, e quanto maior o acesso a ela, melhor, pois maior autonomia as pessoas terão para utilizá-las para produzir, seja bens físicos, informacionais ou virtuais. E neste sentido, o iPhone e tecnologias afins, enquanto tecnologia, colaboram para a disseminação da produção autônoma de conteúdo informacional e virtual. Ao fim, ainda poderia se dizer que é sabido que a Apple e outras grandes corporações se aproveitam de trabalho escravo terceirizado (com consentimento) em mineradoras da África e da América do Sul para obter matéria prima barata e que se utiliza de mão de obra em países que não garantem direitos trabalhistas, como alguns países asiáticos, de maneira que os trabalhadores que montam os produtos recebem mal e trabalham muitas horas. Este último seria um bom argumento para sustentar que uma pessoa que defende o socialismo estaria em contradição ao comprar um produto produzido por via da exploração do trabalho. Mas um liberal também teria este mesmo problema, visto que a teoria clássica do liberalismo preza pelo direito de cada indivíduo de colher os frutos do seu trabalho (pense aqui no trabalhador) e o direito à dignidade humana (teoricamente aqui penso em Locke e Kant, respectivamente). Ainda mais, um socialista sabe que vive num mundo que não é de acordo com a sua utopia, quer lutar para transformá-lo, mas isso não deve exigir dele que não consuma ou não viva dentro do modelo social e econômico no qual está envolvido – ao menos enquanto outra alternativa não existir. Consequentemente, na falta de opção por produtos acessíveis que sejam produzidos com trabalho digno e (de preferência) com a devida distribuição dos riquezas geradas pelos trabalhadores aos próprios trabalhadores, que consumamos o menos pior até que o sistema mude.

Análise lógica e ideológica de discursos e proposições – II

julho 17, 2013

A patricinha vai protestar pelo transporte público, mas volta pra casa de carona com a mãe”.

A falácia aqui consiste no seguinte: existe algo que podemos chamar de contradição pragmática. Este tipo de contradição consiste em que a prática não seja consistente com a teoria, ou simplesmente que não se faça o que se diz. Existem princípios que não podem ser negados. Por exemplo, se não aceito o princípio de não contradição (que algo não pode ser verdadeiro e falso ao mesmo tempo, ou ser e não ser ao mesmo tempo no mesmo sentido), então não tenho meios para discutir ou o que eu digo não faz sentido. Então quando eu entro em um debate e digo algo como “a planta é verde”, minha postura por si exige que eu esteja comprometido com o princípio de não contradição, pois caso contrário eu posso estar admitindo que quando digo que a planta é verde, eu esteja ao mesmo tempo e no mesmo sentido dizendo também que a planta não é verde. A prática de debates exige isto. Logo, é uma contradição pragmática (ou ainda, performática) que eu esteja debatendo e ao mesmo tempo não aceite o princípio de não contradição. Existem outros casos que podemos simplesmente dizer que não há coerência entre os princípios gerais que uma pessoa segue e suas práticas rotineiras: por exemplo, quando alguém toma como princípio não roubar, e rouba. Ou quando alguém toma como princípio não ser corrupto, e se corrompe. Sobre estes casos podemos simplesmente dizer que uma pessoa mente. Que eu diga que acredito que exista uma parede na minha frente implica que eu não vá tentar atravessá-la como se não houvesse nada diante de mim – caso contrário a minha prática desmente que eu creio naquilo que meu discurso diz que eu creio.

A contradição pragmática pareceria ser o caso que refutaria a atitude da menina que vai ao protesto apoiar a luta pelo transporte público, mas volta para casa de carro. Mas ora, a falácia consiste em quem enxerga a contradição pragmática neste caso: que alguém lute por melhoria no transporte público, não se segue que esta pessoa deva necessariamente utilizar o transporte público. Eu posso muito bem exigir escolas melhores para as crianças e adolescentes, mas já ter terminado a escola e não ter nem pretender ter nenhum filho. Quem enxerga a contradição nestes casos não entende a distinção entre interesse público e interesse privado, e tem problemas em entender que pessoas lutem por ideias de justiça que são comuns a todos. Isso quer dizer: ideias de justiça em situações sociais são sempre pretensões de que o bem seja comum.

Se eu acredito que a educação melhora as pessoas, e as pessoas sendo melhores e mais educadas, o ambiente em que elas vivem (a sociedade) será melhor, então se segue que a educação torna a sociedade melhor. Defender a educação é defender um bem comum. E como o bem comum é também bom para mim, o bem comum engloba também o bem privado. Mas o inverso não ocorre: o bem privado nem sempre está de acordo com o bem comum. Eu posso querer que as escolas públicas fechassem, porque eu sou dono de uma rede de ensino, e acredito que sem escolas públicas eu conseguiria ganhar mais dinheiro. Neste caso não estou visando o bem comum, mas apenas o meu, e ignorando se isto será melhor ou não para a sociedade.
O caso de deslegitimar ou ridicularizar a menina que vai de carona com a mãe para o protesto é um caso de aplicação falaciosa do princípio de contradição pragmática, porque ignora que a motivação por melhoria no transporte público é uma motivação por um bem comum, e confunde-a com a motivação por um bem privado. Mesmo uma pessoa que não anda de ônibus (seja por não sair de casa, seja por usar carro quase sempre) pode ter boas razões para defender um transporte público melhor e mais barato.

Deslegitimar uma postura política por conta de o indivíduo usufruir ou não daquele bem que ela exige é uma falácia. A questão da melhoria dos bens sociais não obriga ninguém a usufruir deles. Existem várias razões para uma pessoa pedir melhoria do transporte: para si e para os outros. Mesmo uma pessoa que ganha carona ou tem carro pode eventualmente precisar de ônibus. Sem contar que com um transporte barato (ou de graça) e eficiente, a sociedade se torna mais justa e os espaços urbanos mais acessíveis. Assim, mesmo aquela pessoa que utiliza carro pode ter maior benefício (ainda que estivesse pensando de maneira egoísta) para encontrar outros amigos que não tem carro, para baratear o custo de certos serviços, etc. Isto pode garantir mobilidade para vários trabalhadores, e por conta do maior acesso ao transporte público isto descongestiona as vias, pois muitas pessoas vão preferir andar de ônibus a gastar com combustível e com estacionamento. De outro modo, também, com melhor transporte público se diminui a necessidade de estacionamentos, fazendo com que os espaços físicos possam ser aproveitados para outros fins que não simplesmente para empilhar carros. Uma situação simples: imagine que você tem um amigo que mora longe, que lá não tem ônibus com frequência e que para ele o ônibus é um custo altíssimo, pois ele pega todos os dias, mas não tem dinheiro para comprar um carro. Tendo um transporte melhor e mais viável economicamente, a possibilidade de você marcar um encontro com este seu amigo em outro lugar na cidade aumenta.

Análise lógica e ideológica de discursos e proposições – I

julho 17, 2013

O socialismo real não deu certo. Logo, devemos abandonar princípios socialistas“. – Proposição que aparece com frequência nos discursos de Valter Nagelstein e Mônica Leal, na busca de deslegitimar os movimentos sociais e a ocupação da câmara de vereadores de Porto Alegre com a alegação de que eles seriam socialistas (o que também pode ser falso – não há univocidade completa de ideário no movimento, assim como as pautas são precisas e independentes deste ideário, apesar de serem motivadas por eles -, mas deixemos isto para outro caso)

Falácias: 1– porque uma situação real não funcionou de acordo com princípios ideais, não significa que tenha lhe esgotado. Existem sempre outras possibilidades de aplicação e manejamento deste princípio.  Não é suficiente um caso particular para excluir todas as possibilidades que uma premissa ou princípio apresenta. A refutação seria válida se eu dissesse “todos os pássaros são verdes” e, com a comprovação de que existem pássaros não verdes (azuis, por exemplo), eu provaria falsa a proposição universal que “todos os pássaros são verdes”. Mas com isto ainda não provo o oposto: que não existe algum pássaro verde. Assim, se eu vejo uma forma de aplicação do princípio socialista que não deu certo, não significa que todos os outros possíveis não darão certo. Eu consigo apenas negar que todas as formas de socialismo sejam boas, mas nunca afirmar (a partir de apenas um caso) que nenhuma é ou será. Do mesmo modo, reduzir qualquer princípio socialista à situação stanlinista na União Soviética: não é porque a União Soviética foi socialista que todo socialismo é a União Soviética. Aqui temos um caso de inversão entre a proposição particular e universal: podemos dizer que “todas as sociedades como a União soviética são socialistas”, mas não podemos dizer que “todas as sociedades socialistas são como a União Soviética”(a visualização do diagrama abaixo pode facilitar a compreensão). Esta falácia tem alto valor retórico, pois consegue confundir os desavisados.

Diagrama

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Falácia 2 – Porque o socialismo não deu certo (com base na falácia 1) ainda se deduz uma outra falácia: logo, nosso sistema é o melhor. Na pior das hipóteses, temos apenas que aperfeiçoá-lo ou torná-lo “mais humano”. (O próprio fato de que busquemos “humanizar” um sistema político, por si só já revela uma percepção imanente a esta intenção: a de que ele não é humano o suficiente. Isto deveria ser critério suficiente não para meramente reformá-lo, mas para transformá-lo em outro). Ou seja, aqui aplicamos o caso do terceiro excluído: Ou A ou não-A. O problema todo é o seguinte: o princípio do terceiro excluído é válido na seguinte situação: de uma proposição se diz ou que é verdadeira ou que é falsa, ou ainda, de uma proposição ou sua afirmação ou sua negação, sem a possibilidade de um terceiro. Ainda que possamos polarizar sistemas sociais (como capitalismo x socialismo), ainda assim essa polarização é muito mais gradual do que meramente uma bifurcação. Portanto, o conceito de socialismo não é idêntico à não-capitalismo. Seria válido dizer ou o socialismo é a melhor forma de organizar a sociedade, ou o não socialismo é a melhor forma de organizar a sociedade. Que seja o não socialismo não se segue que seja o capitalismo, porque existem outras possibilidades de sistemas de organização social (e, ainda que na história ou nas concepções existentes não existissem, ainda é logicamente viável pensá-las, o que torna o raciocínio logicamente falacioso). Ainda, não existe “o socialismo”, mas possibilidades de aplicação de princípios socialistas, possibilidades de organização econômicas socialistas, possibilidades de organização administrativa socialista, possibilidades de formação individual e social socialistas (não, o socialismo, ao contrário do que dizem muitos liberais, não ignora a autodeterminação e a liberdade individual – só não separa o indivíduo do mundo e da sociedade, isto é, ele é formado com e na sociedade, e assim é influenciado pelo meio, e também age nele e deve estar de acordo com ele, assim como o social deve agir a fins de permitir a real liberdade, impedindo a submissão de um indivíduo ao outro por necessidades materiais). Tanto um socialismo quanto um sistema liberal podem ter governos mais autoritários ou menos autoritários, mais democráticos ou menos democráticos. Assim reduzir socialismo a apenas uma das suas possíveis configurações (como os regimes totalitaristas da União Soviética e da Coreia do Norte), é uma falácia que ignora as possibilidades lógicas e reais de gradação de várias formas de socialismo.

Os protestos e o lobby automobilístico

junho 19, 2013

Antes de dizer que o protesto é o “povo acordando” ou outras artimanhas da direita brasileira (como transformar os manifestos em “indignação com o PT” ou “reflexo da inflação” – eles, que na verdade tem apenas inveja do PT, mas certamente sabem que o PT apenas ocupa o lugar deles, fazendo a mesma política do PSDB), temos de lembrar: há tempos existem grupos organizados, que se encontram periodicamente e que participavam dos protestos quando eles tinham 200, 100 pessoas. É errada a ideia de que os protestos surgiram do nada. Assim como é errado pensar que eles não têm uma demanda específica. Vamos analisar a situação em Porto Alegre, um pouco do que tenho acompanhado nos jornais, via internet ou em participação direta nos manifestos e ocupações dos espaços públicos. Não pretendo falar por ninguém aqui, apenas fazer uma análise de alguns elementos que parecem estar sendo esquecidos:

Parte dos protestos estão relacionados em um ponto comum. Grupos se manifestam em prol da ocupação dos espaços públicos em Porto Alegre, como praças, gasômetro, largo Glênio Peres, entre outros. Em parte destes lugares há projetos ou intenções de transformá-los em estacionamentos. Há o grupo de ciclistas Massa Crítica, que com frequência ocupam as ruas em grupo em passeios ciclísticos e manifestos contra a ditadura dos automóveis. Há também manifestações contra o corte das árvores. Este corte está sendo feito (já foi feito) para ampliar vias e ruas – obviamente, não as calçadas. Por fim, o protesto que obteve maior sucesso: pela redução da passagem e pela melhoria no transporte público. Pois o que estas demandas (que têm muitas vezes os mesmos grupos como protagonistas) têm em comum? Está óbvio: elas lutam contra um modelo de configuração urbana que retira os espaços das pessoas para caminhar, se reunir, confraternizar, em prol de mais espaços para carro. Ou seja, a questão aqui (apesar de não ser tocada) tem também a ver com a indústria automobilística e petrolífera.

Nossas cidades ficam cada vez maiores, e os espaços cada vez mais longos. Assim, as pessoas precisam de transporte. Como o transporte público é ruim, caro e demorado, as pessoas compram carros. O transporte público fica mais caro, o lucro dos empresários das empresas é cada vez maior (da-lhe subsídio quando o custo fica alto, planilhas manipuladas e investimentos superfaturados), e ao mesmo tempo há incentivo massivo para compra de carros: juros mais baixos, IPI reduzido, propaganda massiva, além do suporte ideológico que faz as pessoas acreditarem que ter um carro é ter poder, é ter liberdade, e que andar de ônibus é coisa de aleijado ou de pobre. Consequência: trânsito cada vez mais lotado – mais poluição sonora, mais poluição do ar, brigas e stress no trânsito, viagens demoradas. Solução? Construir mais vias, aumentar as avenidas. Assim, mais carros cabem no trânsito. E assim também aquilo que ficava mais pertinho, tem que mudar de lugar, e ir pra um pouco mais longe, pra dar lugar para as avenidas. A longo prazo a repetição cíclica: mais estradas, mais carros, mais longe as coisas ficam, mais necessidade de carro, mais vias, mais longe as coisas ficam.

Esta lógica a princípio parece muito burra. Ora, por que não investir em transporte público, pra ter menos carros ocupando espaço nas ruas? Por que não estruturar a zona urbana de outra maneira, que seja mais limpa, mais silenciosa, mais saudável? Por que não bicicletas, skates, patinetes ou simplesmente nossas pernas? Mas quanto mais carro, mais gasolina. Quem ganha? As indústrias automobilísticas e petrolíferas. Não é a toa que os governos cada vez mais sucumbem a estes incentivos, gastando dinheiro público para dar lucro para essas empresas. Elas investem forte em lobby, em propaganda e em lavagem cerebral.

Com certeza o aumento dos protestos não se reduz a isto: são muito mais. São indignações contra a maneira como nosso dinheiro é usado, contra o descaso público com o que é público, é também um grito (dado a nível mundial nos Estados Unidos em movimentos Occupy, nos protestos na Espanha, Portugal, Grécia, Itália, na Turquia, na dita “primavera árabe” – melhor dizendo, africana – na Síria, na Tunísia, na Líbia, os movimentos estudantis no Chile, entre outros) contra o fracasso da democracia representativa. Não é incomum os dizeres “não me representa” contra os governos aparecerem nesses manifestos. O povo quer participar diretamente. Quer democracia direta, não representativa.

Mas não podemos ignorar o que há por trás de muitos dos problemas que nos incomodam: lobby de empresas transnacionais nos nossos governos, e dinheiro deles investido para comprar a mídia, em propaganda massiva e na criação de ideologias para além do simples incentivo ao consumo. A ideologia do carro faz acreditar que pessoas não vivem sem carro. Mais do que incentivar a usar carros, nos faz crer que não existimos sem carro, que um automóvel determina nosso valor. E esse grito que até então estava engasgado deve ser esclarecido aos poucos. Uma parte dele diz: cansamos da indústria automobilística e petrolífera. Não queremos ser carros: queremos a cidade para nós.